Os dias passam...

As cidades crescem, os carros multiplicam-se, os interesses instalam-se,
as florestas desaparecem, os rios adoecem, os pássaros rareiam, as flores pagam-se,
o ruído ensurdece, a fome cala-se, a doença propaga-se, a crueldade esmera-se,
a ganância cega, o poder embriaga, o ter deslumbra, a traição aceita-se,
a solidariedade adia-se, a compaixão despreza-se, a tristeza disfarça-se,
a solidão consome, a palavra nega-se, a honra perde-se,
as pessoas ignoram-se...

Teatro


Tenho tentado arranjar forças para falar de teatro... Do meu teatro.

Paraíso

Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.

Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estortor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

Depois, podes partir.Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençois o lume do teu peito...

Podes partir. De nada mais preciso
Para a minha ilusão do Paraíso.

David Mourão Ferreira

Penumbra

Na penumbra dos ombros é que tudo começa
quando subitamente só a noite nos vê
e nos abre uma porta nos aponta uma seta

para sermos de novo quem deixámos de ser.

David Mourão Ferreira

Instantes

Se há um Deus
que te aprova
esse Deus
não me assiste

Um de nós
é a prova
de que Deus
não existe.

David Mourão Ferreira

O meu melhor amigo

Quando procuro na minha memória os primeiros momentos que passei com ele, encontro pequenos episódios em que raramente participo, mas fazem parte da nossa vida.
Essas lembranças mostram claramente a semente a germinar de um homem inteligente, brilhante e bom. O melhor ser humano da Terra.
Recordo o 1º dia que foi ao colégio, com 3 anos. Morava no Largo José Barata, nº10, muito perto do colégio das freiras. Era só virar a esquina. O Luís, seu amiguinho, também começava a vida de "estudos" e combinaram ir juntos.
A mãe tinha bordado no seu bibe um coelhinho a andar de lambreta e ele, muito vaidoso, de cabelo molhado e acabado de pentear, como a Amélia gostava de fazer, atravessou a rua com passo apressado, a caminho do colégio, pequenino, gordinho e muito, muito bonito.

Nesse Natal, a prenda que pediu ao Menino Jesus foi a cartilha, para aprender a ler.
Sabia o catecismo só de ouvir as lições dos mais velhos e teimou fazer a 1ª Comunhão. O Sr. Padre Bento não autorizava, por ele ter só 4 anos. Como não se calava, a Irmã Prudência intercedeu junto do Sr. Padre, que acabou por concordar em lhe fazer exame.
Provou que sabia o catecismo de cor e salteado e no dia do Corpo de Deus, de fatinho branco, concentradíssimo, fez a 1ª Comunhão.

Mas não era nenhum "papa-açorda"! Um dia, sempre na companhia do amigo Luís, foi brincar para o parque das tílias.
No Fundão o mês de Agosto é muito quente e toda a gente sai à noite para apanhar ar fresco. Um dos lugares mais agradáveis é o Parque das Tílias, onde as crianças aproveitam para brincar. Ele e o amigo lembraram-se de correr à volta do pequeno lago e não foi preciso esperar muito tempo para caírem lá dentro. A mim calhou-me ir a casa buscar roupa seca!

Sabia os nomes de todos os elementos dos clubes de futebol, nacionais e estrangeiros. O pai delirava ouvi-lo dizer os nomes complicados dos jogadores russos, alemães, italianos, eu sei lá…
Falava das fintas, dos cantos, dos fora de jogo e dos penaltis como verdadeiro especialista. Era Belenenses, como o pai.
Nos dias de futebol na TV em que jogava a selecção (não sei se foi por esta altura que Portugal foi campeão europeu) a casa vinha abaixo com o entusiasmo deles.

Já sabia ler, escrever e contar... não queria continuar no colégio.
"Outro ano a brincar? Outro ano a ouvir as mesmas cantilenas de aeiou e de 123?" Não se calava… “O colégio é para os pequeninos”, queixava-se (começava a deixar de ser gordinho e esticava...) Queria ir para a escola.
O pai falou no assunto com o professor Pacheco, de quem era amigo, e riram das espertezas do miúdo. O professor ia leccionar a 1ª classe e achou que podia deixá-lo estar na sala, mesmo sem se matricular, pois só tinha 5 anos. E lá foi, todo lampeiro e sorridente.
No ano seguinte foi o bom e o bonito. Tinha de ser matriculado e por conseguinte, frequentar de novo a 1ª classe. "Então tinha chumbado? Repetir o ano porquê?" O pai soava as suas gargalhadas habituais e não lhe dava importância, mas ele não se conformava, não achava graça à brincadeira. Como sempre, venceu.
Nós fazíamos a 4ª classe em simultâneo com a admissão ao liceu. Quando chegou a sua vez, ainda estava matriculado na 3ª classe. O pai já sabia que não o ia calar e tentou contornar o problema. Fez a 4ª classe na escola e no ano seguinte, em vez de repetir, foi para o Externato fazer a admissão. Andou sempre um ano adiantado. Era decidido, mas sempre meigo e sorridente.
De joelhos no chão e o papel em cima da cama, passávamos horas juntos, eu a desenhar os carrinhos miniatura que ele tinha, ou cenas de cowboys, e ele a assistir maravilhado. Era desenho à vista, com lápis de carvão, com que eu fazia simples efeitos de sombra e luz.
Já então me inspirava e incentivava...
Um dia fomos jantar a casa da D. Etelvina, uma senhora amiga. Havia um piano no enorme corredor da casa. Ele descobriu-o e pediu para ver como era. Daí a pouco começamos a ouvir o som das notas que ele experimentava. Em menos de um minuto já soava na casa a música “As pombinhas da Catarina”.
A música fazia parte dele, nasceu com ele. Sabia todas as canções que estavam em voga. Todo o dia cantava.
A mãe, cansada de o ouvir batucar em tudo o que era lata ou madeira, mandava-o para os quartos mais distantes da sala, onde repetia o reportório das 6 da manhã, até cair de maduro. Aos 14 anos formou um conjunto, nome que se dava então às "bandas". Como não tinha idade para actuar em recintos em que os espectáculos se prolongassem além da meia-noite, pediu uma autorização especial e teve o pai de responsabilizar-se por ele.
Era o baterista do "Psycadelic Set", nome do grupo que ajudei a escolher.
Era o tempo de "If you go to S. Francisco", "Love me tender", "The times they are a-changin", "Love, love me do", dos singles e dos LP de vinil, dos primeiros gritos de fans que desmaiavam a ver os Beatles, das flores no cabelo, do "make love, not war"e do LSD.
Fui emancipada para poder ter a carta de condução e como o meu pai me emprestava o carro, passei a ser o motorista do grupo, transportando os rapazes quando iam actuar nas festas das redondezas. Não fazia grande sacrifício, como se deduz. Tudo aquilo era pura emoção para mim.

Mas ele ainda não sabia dançar. Então, quando os 14 anos já pediam para dançar agarradinho às miúdas, nas vésperas dum Baile dos Finalistas, eu ensinei-lhe o “dois para a frente e um para trás”, ao som da música que a Emissora Nacional oferecia nas tardes de sábado. Deu para o gasto nesse dia. Depois, sem a minha ajuda, tornou-se num grande dançarino.
Os livros de estudo serviam para alguns anos e os meus, talvez por ser pouco estudiosa ou já então bastante cuidadosa, passavam para ele quase novos. Em pouco tempo ficavam sem capas, folhas soltas e dobradas, com desenhos de baterias e violas em todas as folhas, mesmo em cima das lições.
.
Riamos muito. Por tudo e por nada. Quando estávamos juntos, qualquer coisa servia para rirmos. Ainda hoje temos esse hábito.

Fui a sua madrinha nos lobitos (escuteiros).
Nasceu a minha filha e foi ele o padrinho. Quem melhor poderia eu escolher para cuidar dela?
A Rita tem verdadeira paixão pelo Tonô e considera-o como um pai.
Casou e eu fui a sua madrinha.
Laços supérfluos comparados com o sentimento verdadeiro que nos une.
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A vida ganha tendo-o como músico, escritor e poeta.
Ele ganha a vida como advogado.

É realmente um ser humano muito especial.
Tem um coração enorme, doce, sensível e generoso. Tem muito sentido de humor e é uma companhia muito divertida.
Mas o tempo não pára e a vida deu-nos rumos diferentes.
Ele é importante, respeitado e muito querido pelos seus e por muitos, muitos amigos.
Em todos os momentos, no entanto, mesmo a km de distância, eu sinto que posso contar com ele, que ele está sempre lá.
Há algum tempo, alguém defendia as vantagens dos filhos únicos e uma amiga minha, a Vandinha, disse que nem imaginava a vida sem o irmão. Eu fiquei a pensar nisso e compreendi o que ela sentia. Que tristeza, se não tivesse o meu irmão. A minha solidão seria bem mais pesada. É ele que me incentiva, me ajuda, me defende, me ensina, me compreende. Tanto que eu perdia!O
...Obrigada, paizinho.
Tivemos sempre sonhos idênticos.
Desde criança sonho muitas vezes que estou sentada a um piano e toco sem dificuldade as músicas que mais gosto. Casei cedo, tive os meus filhos e tenho trabalhado muito para não depender de ninguém. Talvez tudo isso não passe de uma forma de justificar a minha preguiça , mas nunca arranjei tempo para ir estudar música.
Ver o meu irmão sentado ao piano e ouvi-lo tocar tão bem, foi maravilhoso! O meu coração encheu-se de música e de... orgulho.
No liceu fiz aptidão a Direito, mas depois entrei para História, fui trabalhar, casei e não continuei. Adoro escrever, mas ver os seus poemas, as suas crónicas, os seus contos, mostra-me que também aí, ele vai bem à frente.
Eu sonho e ele vive.
Pois é! Que seria a minha vida sem o meu irmão, sem o meu melhor, maior e verdadeiro amigo?
Em tempos, tive o meu pai, que ao partir, providenciou que eu não ficasse desamparada e me deixou este irmão. Obrigada, paizinho..
Está prestes a passar mais um aniversário do seu nascimento. Foi abençoado na hora em que nasceu, mas mais do que ele, fomos nós abençoados com a sua presença na nossa vida.
Deus estava inspirado quando pegou no barro com que o modelou. Estava inspirado e foi muito generoso.

. Parabéns Tonô e que o dia 14 de Junho se repita por muitos e muitos anos, com saúde, alegria e sucesso. Sê feliz. Não deixes por menos!

Só mais um...

Mais um aniversário... que bom! Estou mesmo feliz!!! E o booooolo?

já agora...


para já, um símbolo:
uma fonte, confinada mas possante, de onde nasce uma torrente imensa, irrepetível, interminável...

Nós e... os outros!



400 Milhões de crianças passam fome.
4 Milhões de pessoas morreram de fome no último ano.
1,3 Biliões de pessoas não têm acesso a água potável.


Há números idênticos para povoações sem saneamento básico, sem acesso à saúde e que morrem com doenças que uma simples vacina previne.
Para povos que são escravizados, que sobrevivem de trabalhos degradantes, que utilizam a mão-de-obra das suas crianças.
Para pessoas que são agredidas, abandonadas, marginalizadas, violentadas ou perseguidas devido às suas opções políticas, religiosas ou sexuais.
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Todos esses números perdem importância quando temos tudo.
Quando temos tudo, passamos a preocupar-nos com a moda. E para estarmos na moda temos de ser altos, magros, bonitos, jovens e ricos.
Somos avaliados pelo que possuimos e pelo que parecemos.
Temos de medir, pelo menos, 1,70 m de altura, senão vemo-nos obrigados a usar saltos de 10 cm, plataformas com 2 ou 3 cm, roupas que alonguem o tronco ou as pernas, conforme a necessidade.
Temos de ser esqueléticos, com as maçãs do rosto salientes, as costelas debulhadas, os dedos finos que nem linhas e as unhas bem limadas, transparentes como vidro.Dieta é a palavra de ordem.
Não porque o açúcar provoca diabetes, a gordura origina colesterol… mas porque qualquer grama a mais, é mal aceite pela sociedade. A gordura é desleixo, falta de brio, de força de vontade, gula, lambança. Estar de dieta é sinal de lucidez.

Também devemos fazer exercício, muito exercício. Não a lavar o chão da nossa casa de banho, o fundo da nossa banheira, não a passar a ferro ou a encerar os móveis, não a cultivar uma horta ou a cuidar do jardim, que para isso há as empregadas, os jardineiros.

Devemos frequentar o ginásio, com treinador que saiba medir a massa muscular, as pulsações cardíacas e que trate por tu as calorias.Não é só suar e emagrecer… é ficar rijo, liso, simétrico.

Se emagrecermos em partes do corpo que queremos mais salientes, podemos fazer implantes… Também podemos esticar a pele, suprimir o duplo queixo, subir as sobrancelhas, tirar os papos dos olhos, encher os lábios, adelgaçar a cintura, aumentar ou diminuir os seios, empinar as nádegas e até voltar a ser virgem... porque não?

Os cabelos tomam a cor que diga bem com a roupa, com a estação do ano, com a estreia do filme a que vamos assistir. Tão depressa podem ser curtos como chegar à cintura.

Cabelos, pestanas, unhas... como quisermos, à hora que o decidirmos. A Natureza já não tem lógica.Tudo se pode alterar numa clínica de estética. A lógica está no que a moda dita e ela exige que continuemos eternamente jovens. Para isso, fazemos tudo, tudo. Não temos filhos, arranjamos namorados cada vez mais novos, vestimos o que foi assinado por estilista bem excêntrico, utilizamos linguagem incompreensível e temos assinatura anual para concertos e festivais.
É obrigatório viajar várias vezes por ano, para destinos cada vez mais distantes e falar disso com a naturalidade de quem vai à Costa da Caparica... Como ser considerado sem fazer um cruzeiro ? Como ser respeitado sem ir ao Brasil, à Riviera Maia ou a Cancun?
Claro que temos de ser ricos. Ou pelo menos, parecê-lo. (É para isso que servem os créditos bancários. ) Mas devemos mostrar sempre desprezo pelo custo da moda.
Conhecemos bem a fome. Fome, mas fome a sério… Então e a fome que passamos para não engordar?

Fazem alarido porque lavamos os nossos carros, regamos os nossos revaldos, usamos os nossos jacuzis, aproveitamos as nossas piscinas? Até parece que utilizamos água mineral...

Ora, a vida é só uma e temos de a aproveitar. É mórbido pensar em fome, guerra, doença, abusos, sei lá, quando vendemos saúde e só desejamos ver-nos livres de alguma gordura ou de umas primeiras rugas. Claro que temos de olhar para o espelho, para as revistas e para as montras… Desigualdades? Não fomos nós que as fizemos...
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Mais alguns números: Uma caixa de 750 g de ovas de esturjão, o conhecido caviar, custa 3.600 Euros e é consumido como aperitivo num jantar para 16 pessoas.

A pele de crocodilo é vendida para fazer sapatos, cintos, malas ou vestidos a 20 Euros cada centímetro.

A Hermés, em Paris, vende um vestido nessa pele por 150.000 Euros e uma mala por 12.000 Euros.
Todos os anos, 150 milhões de telemóveis são trocados por outros mais modernos.
Foi vendido hoje, em leilão, um quadro de pintura contemporânea por 65 milhões de dólares...
Vivemos tempos em que a futilidade é soberana.